quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Lançamento da ISO 26000 no Brasil

Lançamento da ISO 26000 no Brasil

A ISO 26000, norma internacional de Responsabilidade Social, foi lançada no Brasil hoje (8/12), em evento promovido pela Petrobras e pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). A Petrobras, primeira empresa brasileira a anunciar que vai seguir as diretrizes da ISO 26000, promoverá, em parceria com a ABNT, um ciclo de seminários sobre a norma em todas as regiões do país.
A ISO 26000 é considerada inovadora, pois é a primeira norma ISO construída por um grupo de trabalho presidido conjuntamente por um país desenvolvido, a Suécia, e um país em desenvolvimento, o Brasil. Além disso, pela primeira vez a ISO utilizou um sistema participativo composto por seis partes interessadas (representantes da indústria, do governo, dos trabalhadores, dos consumidores, das ONGs, de instituições acadêmicas, de pesquisa e consultoria). Vale ressaltar que a norma tem caráter voluntário e orientador, não implica certificação nem verificação externa por terceiros.
A ISO 26000 levou oito anos para ser construída e envolveu 400 especialistas de mais de 90 países, liderados pelo Brasil e pela Suécia. A versão final foi lançada novembro, em Genebra, e foi traduzida para o português pela ABNT com o apoio da delegação brasileira. Ao todo, a norma contempla sete temas: direitos humanos, práticas de trabalho, meio ambiente, governança organizacional, práticas leais de operação, relacionamento com consumidores, envolvimento comunitário e desenvolvimento e tem um capítulo específico de orientação sobre como integrar responsabilidade social na organização. A expectativa é de que a norma se torne um novo paradigma de atuação em responsabilidade social para todas as organizações.
A Petrobras em parceria com a ABNT apoiou a delegação brasileira na construção da norma. Em quatro anos, foram realizados 14 seminários no país, que envolveram mais de mil participantes, para debater os temas da norma. “Esses eventos mostraram o protagonismo do Brasil na difusão da construção participativa da norma. Nenhum outro país envolvido na discussão da norma promoveu tamanho debate interno sobre sua construção”, explica Ana Paula Grether, coordenadora do Relatório de Sustentabilidade da Petrobras e representante da Indústria na delegação brasileira na ISO 26000.
A parceria da Petrobras com a ABNT continua após o lançamento da norma. A partir de 2011, serão realizados mais seminários em todas as regiões do país (Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Salvador, Manaus e Porto Alegre) para disseminar a aplicação da ISO 26000. A norma, cujo preço de comercialização no Brasil é de R$ 180,60, será distribuída gratuitamente nos seminários.
“A delegação brasileira foi muito participativa no processo de construção da ISO 26000, levando a contribuição das diferentes partes interessadas ao grupo de trabalho internacional: indústria, governo, trabalhadores, consumidores e organizações da sociedade civil. O foco agora é incentivar a implantação da norma no país”, afirma Ana Paula.
Além disso, a Petrobras é a primeira empresa brasileira a se comprometer em adotar a ISO 26000. “Nós acompanhamos todo o processo de construção da norma. Então nós já trouxemos esse conhecimento para dentro da empresa e a partir disso formulamos requisitos de excelência em responsabilidade social com linhas de ação específicas”, finaliza Ana Paula.
A Petrobras elaborou 80 requisitos de excelência em Responsabilidade Social, seguindo os dez princípios do Pacto Global e baseando-se também no conteúdo da norma e em outros indicadores de relevância internacional, como os da Global Reporting Initiative e o questionário do Índice de Sustentabilidade Dow Jones.
Entre as ações internas da Petrobras quanto à implementação das diretrizes da ISO 26000 estão a formatação de curso específico sobre os temas da norma para seus funcionários na Universidade Petrobras e a capacitação em responsabilidade social para fornecedores, em parceria com o SEBRAE. A primeira iniciativa está relacionada à questão de desenvolvimento humano e capacitação no local de trabalho e à integração de responsabilidade social em toda a organização, tratados pela norma. E a segunda iniciativa está alinhada ao conceito de Esfera de Influência, também definido na norma. A ISO 26000 relaciona os temas da responsabilidade social que devem ser considerados na esfera de influência e na cadeia de valor da organização, incluindo, por exemplo, seus fornecedores, parceiros comerciais, distribuidores e clientes.
Sobre a norma
A ISO 26000 elenca os princípios e temas centrais de responsabilidade social e orienta como as organizações devem integrá-los em sua atuação, considerando os impactos econômicos, sociais e ambientais de suas atividades, diretos ou indiretos.
Entre outros tópicos, a ISO 26000 definiu o conceito de responsabilidade social: “Responsabilidade de uma organização sobre os impactos de suas decisões e atividades na sociedade e no meio ambiente através de comportamento transparente e ético que contribua para o desenvolvimento sustentável, incluindo saúde e o bem estar da sociedade; leve em conta a expectativa das partes interessadas; esteja de acordo com as leis aplicáveis e consistente com as normas internacionais de comportamento; e esteja integrada através da organização e praticada nos relacionamentos desta”.
São temas centrais da norma:
Governança organizacional – Trata dos processos e estruturas de tomada de decisão, delegação de poder e controle. O tema é, ao mesmo tempo, algo sobre o qual a organização deve agir e uma forma de incorporar os princípios da responsabilidade social à sua forma de atuação cotidiana.
Direitos humanos – Inclui verificação de obrigações e de situações de risco; resolução de conflitos; direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais; direitos fundamentais do trabalho; evitar a cumplicidade e a discriminação; considerando grupos vulneráveis.
Práticas trabalhistas – Refere-se tanto a emprego direto quanto ao terceirizado e ao trabalho autônomo. Inclui emprego e relações do trabalho; condições de trabalho e proteção social; diálogo social; saúde e segurança ocupacional; desenvolvimento humano dos trabalhadores.
Meio ambiente – Inclui prevenção da poluição; uso sustentável de recursos; combate e adaptação às mudanças climáticas; proteção e restauração do ambiente natural; e os princípios da precaução, do ciclo de vida, da responsabilidade ambiental.
Práticas operacionais justas – Compreende combate à corrupção; envolvimento político responsável; concorrência e negociação justas; promoção da responsabilidade social na esfera de influência da organização; e respeito aos direitos de propriedade.
Questões dos consumidores – Inclui práticas justas de negócios, marketing e comunicação; proteção à saúde e à segurança do consumidor; consumo sustentável; serviço e suporte pós-fornecimento; privacidade e proteção de dados; acesso a serviços essenciais; educação e conscientização.
Envolvimento com a comunidade e seu desenvolvimento – Refere-se a investimento social; desenvolvimento tecnológico; investimento responsável; criação de empregos; geração de riqueza e renda; promoção e apoio à saúde, à educação e à cultura.
Publicado em: 8 dezembro, 2010 

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Médicos desconhecem como tratar dependentes de crack

Conselho Federal de Medicina vai definir orientações para profissionais no primeiro semestre de 2011

Priscilla Borges, iG Brasília | 26/11/2010 11:11
  • Mudar o tamanho da letra:
  • A+
  • A-
Compartilhar:
O consumo de crack no Brasil se tornou uma epidemia e, por enquanto, está absolutamente fora do controle das autoridades e das famílias brasileiras. Políticas de prevenção, tratamento e repressão ainda pouco eficientes preocupam a classe médica, que precisa atender os que sentem o efeito devastador da droga e responder às angústias de famílias que chegam aos hospitais sem saber o que fazer com os filhos. Até agora, eles dizem não saber como fazer isso.

Com este diagnóstico em mãos, o Conselho Federal de Medicina (CFM) reuniu as principais autoridades do País para traçar, até a metade do ano que vem, novas normas de atendimento aos usuários dependentes do crack.
O CFM está preocupado com a lentidão dos resultados de políticas públicas para o assunto e também com o novo plano de combate traçado pelo governo federal. Os conselheiros querem participar mais ativamente das discussões e do monitoramento das ações definidas pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas da Presidência da República (Senad), que ainda estão no papel, mas movimentarão R$ 400 milhões até o fim do ano.
Para isso, médicos interessados no tema em todo o Brasil se reuniram em Brasília nesta quinta-feira, dia 25. Iniciaram um Fórum Nacional sobre Aspectos Médicos e Sociais Relacionados ao Uso de Crack, que já tem mais duas reuniões marcadas para o ano que vem. Em março de 2011, a classe discutirá políticas de redução de danos aos usuários. Em abril, definições sobre o protocolo de atendimento ideal entrarão em pauta e, em maio, a capacitação dos profissionais que lidam com dependência química será o foco dos debates.
Desconhecimento
O primeiro encontro serviu para que gestores, pesquisadores e médicos que lidam com os pacientes na ponta dividissem preocupações e opiniões sobre as estratégias adotadas hoje no Brasil para combater o avanço do consumo da droga e auxiliar na recuperação dos dependentes.
“Sabemos pouco sobre o crack no mundo. Não há protocolo, antídoto ou dados suficientes para lidarmos com o problema. A certeza é de que todos precisamos trabalhar juntos: gestores, psiquiatras, sociedade”, afirma Ricardo Paiva, coordenador do fórum.
Uma pequena pesquisa de opinião preparada durante o evento mostrou que os médicos, de fato, desconhecem as especificidades do tema. Em perguntas como “você se sente qualificado para tratar o crack” ou “você conhece protocolos de assistência ao usuário”, a maioria dos participantes respondeu não (65% e 75,8%, respectivamente). Metade dos participantes admitiu não saber para onde encaminhar um usuário de crack se precisasse. Roberto Luiz d’Ávila, presidente do CFM, reconheceu que ele próprio desconhece as respostas.
“Cabe aqui uma reflexão de que precisamos agir e sensibilizar os médicos para o problema, tanto como profissionais quanto como cidadãos”, comentou. A falta de formação adequada para lidar com os pacientes usuários da droga é apenas um dos empecilhos para o enfrentamento adequado da epidemia. Os médicos criticam a definição lenta de ações eficientes nesse sentido.
“Infelizmente, nos últimos 10 ou 12 anos, o governo não teve sensibilidade para compreender a urgência que o crack exige e demorou a responder à epidemia”, critica Ronaldo Laranjeira, coordenador do Instituto Nacional de Políticas sobre Álcool e Drogas (Inpad).
Para Laranjeira, os modelos de atendimento dado aos usuários hoje e os definidos no novo plano de combate à droga não acompanham a complexidade da dependência causada pelo crack. “Essa é uma doença complexa. Vamos precisar de ambulatórios especializados, ações em escolas, maior relação com grupos de autoajuda, moradias assistivas”, afirma. O médico ressalta que grande parte dos usuários da droga morre nos primeiros cinco anos de vício. “Não vimos essa urgência refletida no combate ao uso da droga”, diz.
O psiquiatra defende a criação de unidades de tratamento especializadas, que combinem diferentes estratégias para evitar recaídas dos pacientes. Psiquiatras, psicólogos, grupos de autoajuda e orientação familiar têm de estar disponíveis, defende. Outro ponto fundamental, segundo ele, é preservar diferenças regionais nas ações. “Não é uma crítica partidária. Temos visto as mesmas políticas desde o governo de Fernando Henrique Cardoso. A área da dependência química continua neglicenciada”, diz.
Plano federal
Paulina Duarte, secretária-adjunta da Senad, defendeu o plano elaborado pelo governo em maio. “Concordo que muito ainda é precisa muito, mas discordo da ideia de que nada foi feito. O governo tem feito um investimento gigantesco, que pode ser insuficiente ainda, especialmente nas áreas de tratamento e ressocialização. Esse não é um plano milagroso, ele nasceu de trabalhos que temos feito em parceria com universidades, financiando pesquisas”, afirmou. Segundo Paulina, R$ 400 milhões serão investidos ainda este ano no programa.
O plano contempla diferentes frentes de atuação: ensino e pesquisa; prevenção, tratamento e reinserção social, e enfrentamento ao tráfico. Nas próximas semanas, Paulina garante que uma promessa feita no lançamento, que já deveria estar no ar, finalmente estará disponível à população, um site informativo e interativo sobre o crack. O objetivo é esclarecer a população sobre a droga, mostrando como a dependência é causada, o efeito da droga no organismo, como funciona o tratamento e onde buscar ajuda.
De acordo com Paulina, a rede de assistência social e a de saúde serão ampliadas. Além da criação de leitos para dependentes químicos em hospitais gerais, mais Centros de Atenção Psicossociais (CAPs) passarão a funcionar no País. O plano também vai financiar estudos sobre o perfil dos usuários de crack no Brasil. As estatísticas disponíveis sobre isso atualmente retratam recortes da sociedade e não toda ela. Há dados sobre estudantes consumidores da droga e habitantes de algumas regiões, por exemplo.
Com dinheiro e escolarizados
Um estudo com 22 mil pessoas em todo o País será concluído no início de dezembro, segundo Paulina. Ana Cecília Marques, pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo ( Unifesp), ressalta que o perfil dos usuários mudou desde a década de 1990, quando a droga se tornou popular no País.
“Hoje, 0,3% da população mundial está consumindo o crack. Em 2004, identificamos que pelo menos 1% dos estudantes do ensino fundamental das escolas públicas já haviam experimentado a droga. Hoje, os usuários são mais escolarizados e mais velhos”, diz.
Durante os debates, uma senhora comoveu os participantes. Professora da rede pública de ensino de Brasília, Diana Costa, 56 anos, ouviu pelo rádio a notícia do fórum. Decidiu buscar mais informações – mesmo sendo um evento para especialistas – sobre a droga que acabou com sua família. E pedir ajuda.
O filho dela, de 36 anos, e a nora, de 20, estão viciados em crack. Ela contou que eles perderam tudo o que tinham em casa para acertar dívidas com os traficantes. O filho, de dois meses, também foi rejeitado pelos dois, que o entregaram a ela. "Esse crack é uma desgraça", afirmou.
Diana pediu que os especialistas lhe orientassem. Ela já havia acompanhado o filho e a nora a hospitais públicos de Brasília duas vezes para tentar uma consulta com um psiquiatra, mas não conseguiram. E ninguém a indicou o que fazer.
"Eu estou desesperada. Essa droga acabou com meu filho, acabou com a minha vida. Isso é avassalador. Meu filho largou emprego, emagreceu quase 20 quilos em quatro meses. Não sei o que fazer", desabafou.

fonte: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/medicos+desconhecem+como+tratar+dependentes+de+crack/n1237839774949.html

Orçamento de 2011 repete ?farra dos institutos?

AE - Agência Estado
A farra dos institutos fantasmas com o dinheiro público tem tudo para continuar em 2011. O projeto do Orçamento da União do ano que vem, relatado pelo senador Gim Argello (PTB-DF), prevê, pelo menos, R$ 16 milhões em emendas de parlamentares a essas entidades criadas apenas para intermediar convênios com o governo federal.
Esses contratos são assinados para a realização de eventos culturais, cujos orçamentos e prestações de contas são superfaturados, fraudulentos e assinados por laranjas. Os institutos costumam levar uma comissão de 5% pela intermediação, sem licitação.
Entre o total de emendas previstas Orçamento de 2011, pelo menos R$ 10 milhões são destinados a dois institutos: Planalto Central e Conhecer Brasil. São entidades registradas em endereços falsos e que compraram estatutos de associações comunitárias para funcionar e intermediar convênios nos últimos dez meses, conforme esquema revelado por reportagens do Estado desde o último domingo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,orcamento-de-2011-repete-farra-dos-institutos,650530,0.htm

"Temos um serviço de saúde que não funciona para o crack"

"Temos um serviço de saúde que não funciona para o crack"

Para pesquisadora, estratégia brasileira de combate está na contramão do resto dos países que conseguiram controlar o problema

Priscilla Borges, iG Brasília | 26/11/2010 13:08
  • Mudar o tamanho da letra:
  • A+
  • A-
Compartilhar:

Foto: Divulgação CFM
Ana Cecília Marques: problema do crack é econômico e geopolítico
A psiquiatra e neurocientista Ana Cecília Marques estuda a dependência química há 30 anos. Pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ela defende que os gestores devem enxergar o comércio de drogas no mundo como um problema econômico.
“Não adianta os médicos ficarem falando da abstinência e os assistentes sociais da desestrutura familiar enquanto o problema vai muito além”, afirma.
Para a médica, a repressão à chegada das drogas no País tem de ser intensificada e as políticas de prevenção e de tratamento precisam ser descentralizadas, feitas por todas as instâncias de saúde.
Em entrevista ao iG, Ana Cecília se mostrou descrente em relação à eficácia do plano de combate ao crack elaborado pelo governo federal. Para ela, ao contrário de criar unidades de atendimento extremamente especializadas para tratar esses pacientes, todas as unidades básicas deveriam estar preparadas para lidar com as doenças causadas pelo uso de álcool e drogas.
“É essa a recomendação da Organização Mundial de Saúde e, depois de 30 anos de trabalho na área, acho que eles estão certíssimos. Não daremos conta de enfrentar esse problema sozinhos. Todos têm de ser envolvidos”, garante. Confira trechos da entrevista.
iG: A senhora fala que estamos na segunda onda de consumo do crack no Brasil. Quando houve a primeira?
Ana Cecília: Nos anos 90. A segunda começou em 2000. As drogas são um problema econômico. Infelizmente, a humanidade tem assimilado a droga como se fosse um produto qualquer. A gente vê isso com o álcool, que não tem nenhuma regulação. Quem regula a bebida alcoólica é a própria indústria do álcool e isso acontece com outras drogas também.

Em algum momento, se descobriu que as drogas tinham um valor, que poderia existir um mercado que sustenta essa economia. Quem entrou de carona nessa história das drogas foi o adolescente, que era o hippie, e nunca mais saiu. Os países vizinhos, como Colômbia, Peru e Bolívia, tiveram um superprodução de cocaína e inundaram o Brasil com ela.Com uma grande safra, o preço cai e fica acessível para todo mundo. E mais, criam-se produtos mais baratos. Aí surgiu o crack. Já houve ondas de consumo dele no Canadá, nos Estados Unidos e na Europa. Mas obviamente que uma droga suja e barata em países que têm poder aquisitivo e economia forte não dura. A questão das drogas passa pela economia das drogas e pela geopolítica das drogas.
iG: Há diferenças entre o modo como ocorreram a primeira e a segunda onda?
Ana Cecília: Não, foi igualzinha. Existia uma epidemia de crack nos Estados Unidos em 1985. Eles também atravessaram um momento muito difícil, só que durou menos porque eles tinham mais recursos para enfrentá-lo. Eles passaram pelo problema antes e agora sobrou pra nós. Isso tem a ver com essas questões que nós, da saúde e da assistência social, das áreas mais humanas, não reconhecemos muito bem. Os médicos ficam falando sobre a síndrome de abstinência, os assistentes sociais ficam falando da desestrutura familiar, quando o problema vai muito mais além.
iG: O perfil dos usuários mudou ao longo desses anos?
Ana Cecília: Sim. O usuário antes era mais pobre, mais desorganizado, mais novo, menos escolarizado e morria antes. Nem tinha internet para ajudar a difundir conhecimento, então havia menos informação. Hoje, o usuário é mais escolarizado, mais velho, vive com a família – e não na rua, como no começo – e aprendeu a usar a droga.
iG: Como assim aprendeu a usar a droga?
Ana Cecília: Hoje, o usuário tem mais acesso à informação e já morreu muita gente por causa da droga. Provavelmente, esse usuário está desenvolvendo estratégias de consumo, por exemplo, usando a droga duas vezes por semana. Precisamos entender quais são os fatores que estão fazendo com que esse indivíduo viva mais. Talvez eles tenham mais informação, talvez haja um cardápio de drogas maior e ele alterne o uso. Hoje, o usuário discute com você e busca tratamento. Isso não acontecia antes. Hoje, eles batem na porta dos CAPs para pedir ajuda. Temos de aprender a cuidar melhor desse assunto, a tratar melhor, a prevenir melhor, a reprimir melhor. A repressão é muito importante. É importante percebermos também que todas as instituições que se preocupam com drogas têm 10 anos. O Brasil acabou de sair da segunda infância na questão das drogas. O que temos de fazer? Estudar, aprender com os países que já passaram por isso, fazer os levantamentos nacionais para entender o problema e saber qual é a cara do crack no Brasil.
iG: Os dados ainda são insuficientes para que o País conheça essa realidade?
Ana Cecília: A gente sabe muito pouco. Não temos um levantamento nacional que represente o Brasil inteiro. Temos estudos de grupos de populações: estudantes das escolas públicas das cidades mais populosas, o crack nas emergências, nos Centros de Atendimento Psicossociais. É uma colcha de retalhos.
iG: Como mudar isso?
Ana Cecília: Temos de criar grupos interdisciplinares para analisar os relatórios enviados pelos organismos internacionais sobre essas drogas e cuidar disso. A gente tem de ser humilde nesse momento e olhar para as dificuldades que nós temos: um serviço de saúde que não funciona para o crack. O craqueiro precisa que, quando ele chegue perto do tratamento, que o atendimento o engula antes que ele suma em minutos. Isso em todos os níveis da saúde. Não sou a favor de centros ultraespecializados. Em todos os lugares do mundo, a Organização Mundial de Saúde defende o atendimento ao dependente na atenção primária à saúde. O paciente entrou na unidade básica, no programa de hipertensão, a gente tem de investir álcool e drogas. A gente não tem CAPs suficientes, nem bons de prática, nem médicos suficientes, nem psicólogos suficientes pra cuidar das drogas no Brasil. Então, toda a saúde tinha de se envolver nisso. Não adianta ficar inventando, é preciso usar o que temos para cuidar desse problema assim como ele é. Hoje, a minoria dos pacientes que chega à emergência é encaminhada ao CAPs depois. O modelo hoje coloca o CAPs no centro de tudo, como se ele tivesse de dar conta de tudo e ele não dá. Precisa de todo o resto da saúde, da assistência social e da justiça, porque é uma doença complexa.
iG: Como a senhora avalia as internações dos usuários de crack?
Ana Cecília: A gente precisa de especialistas para tratar desses indivíduos. Nos hospitais gerais, como querem colocar leitos para internação, não há especialistas. Começa por aí. Depois, hospital geral não é ambiente para dependente. Ele precisa de silêncio, não pode ter estímulo visual, tem de ficar calmo e quieto. Os hospitais gerais teriam de passar por mudanças, ter alas separadas, com médicos especialistas e equipes multidisciplinares, senão não funciona. Mas é importante lembrar que nem todo mundo precisa de internação. Internamos os casos em que há risco para a própria vida ou a do outro, da família ou dos amigos, ou quando há um problema de saúde muito grave em consequência da dependência.
iG: Na sua opinião, o plano traçado pelo governo é eficaz?
Ana Cecília: Esse “PAC do Crack”? Eu não acredito. Sou uma das céticas. Depois de 30 anos de trabalho na área de prevenção, tratamento e controle social, é a de que deveríamos ter políticas regionais. Melhor ainda, estaduais, que reflitam o que está acontecendo em cada estado. Não é a mesma coisa. Em nenhum momento, a política poderia se aproximar de uma política só, com uma missão só. Por exemplo: as políticas de redução de danos não podem ser únicas para todos os pacientes e para todas as drogas, como tem acontecido no Brasil. Como podemos massificar dessa forma um assunto tão difícil?Há experiências nacionais que tem de ser olhadas e adotadas, respeitando diferenças regionais e estaduais. Acho que a gente está na contramão. Se a OMS fala para colocarmos o tema de álcool e drogas na atenção primária, estamos fazendo centros ultra-especializados. Sou contra. Sou a favor do Programa de Saúde da Família. Acho que está ali a nossa saída. Eles é que podem fazer a detecção precoce e o encaminhamento daqueles casos que eles não conseguem tratar, pulverizando o atendimento, já que droga está em qualquer lugar.
iG: Os médicos brasileiros estão preparados para lidar com essa epidemia?
Ana Cecília: Não, de jeito nenhum. Minha formação é em clínica médica. Depois, fiz residência em psiquiatria e neurociência para entender um pouco desse assunto. Não estou fazendo demagogia. Há muita coisa para entendermos ainda. Temos de formular cursos de capacitação para o Programa Saúde da Família, que já conta com capacitações constantes na base. Precisamos só inserir o assunto.

fonte: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/temos+um+servico+de+saude+que+nao+funciona+para+o+crack/n1237839986827.html